Seja bem-vindo.

Aos poucos deixarei aqui algumas impressões. Talvez o meu mundo seja parecido com o seu. Nele, uma grande luz brilha, cada dia mais intensa. O "Sol da Justiça", tão fácil de explicar, tão difícil de entender. Não sejam as minhas palavras, mas uma brisa que alivie o estado ruim de nossas almas.


ACORDA ELIAS

ELIAS (ELIYAHU) 

- Acorda Elias!

Era a sua mãe a chamar.

- Acorda!

Viu a folha de metal, o teto. Novamente aquela vibração que tomava conta do casebre, “mrmrmr”… Buscando firmar o raciocínio, na penumbra, analisou alguns detalhes da mesinha ao seu lado. Frestas antigas na tábua. Era uma boa tábua, pesada, uniforme. Umas marcas no centro indicavam ter servido a muitos trabalhos, sem que no entanto se quebrasse.

Como era seu costume expressar o que pensava, disse - Linda tábua - e suspirou.

O dia estava ganho. As mesmas pessoas, as mesmas situações. Uma previsibilidade que favorecia o ócio. Antares lhe daria algo para comer.

Pela manhã, nem fome nem sede sentia. Apenas a mesma melancolia, sobre um mundo que não parava. Como a vibração do telhado, que no entanto continuava lá, imóvel. Fazia tempo que residia naquela pequena casa, feita em um canto de muros, uma porta, uma janela. Um de seus avós a tinha construído, antes de ir-se, ninguém sabe para onde. Sumiu.

Aos poucos o céu se iluminava e era nítido. Nenhuma nuvem.

- Dia lindo. Graças a Deus! - era sua oração da manhã.

- Graças a Deus. - confirmou a si mesmo.

Já se podia ver o caminho que levava às ruas de baixo. Pôs-se a andar. Elias era um rapaz curioso. Sem pressa, via sempre as mesmas coisas, pequenas flores, vespas iniciando suas tarefas. Uma delas preparava-se limpando criteriosamente suas antenas, sua cabeça e depois levando as patinhas à boca. Levou um tempo, o tempo das vespas, e decolou no caminho do vento.             - Bom dia! Bom dia!

Esta era a mensagem para cada cachorro que, invejoso do passeio, latia com sua aproximação. Elias era jovem, mas já não precisava ir à escola. Assim, finalmente, não era obrigado a mais nada. Seus dias tornaram-se longos. As noites infinitas. Isso porque Elias sonhava muito. Sua biblioteca de sonhos já não se podia estimar. Folhas e mais folhas, todas soltas, misturavam-se em um mar de histórias que davam até calafrios. Por isso que às vezes Elias tinha pesadelos. Sob as páginas, nas sombras, as letras resolviam se embaralhar e sobrecarregavam o pensamento dele.

Sombrio nos pensamentos, alegre no caminhar. Preocupava-se com o inevitável e sorria.

- Bela árvore.

Deteve-se diante da velha conhecida. Como estava com pressa, apenas tocou a contorcida casca, piscou lentamente como que a receber uma resposta e foi-se.

Pressa? Na verdade, ele estava um pouco atrasado. Uma vez que fazia questão de sentir, sempre lhe restava pouco tempo para avançar. Mas chegou.

- Olá, bom dia. Tudo bem com você Luzia?

Luzia servia um aquecido creme de cafeína, na esquina onde começa a Avenida das Confusões. Para Elias ela o fazia gratuitamente, todas as manhãs.

- Bom dia menino.

O sorriso da terna senhora era incomparável. A Estrela da Alva e o calor do Sol. Se um dia não houvesse mais o creme, o sorriso certamente bastaria.

- Você viu como esfriou?

A pergunta não fez sentido, mas Elias respondeu, em uma competição de contentamento.

- É. Bom que a gente pode tirar o cobertor do armário. Fica tudo bem.              - Fica.

Respondeu a avó, senhora daquela esquina, amada dos transeuntes.

- Deus te abençoe e te guarde. Obrigado!

E saiu soprando o creme fumegante no copinho de isopor.

Seu destino era claro. Precisava alongar o corpo. Mas que preguiça! Só com as faíscas de Antares é que teria motivação para fazê-lo. Mas Antares estava na Praça Florida e a praça estava no coração da velha cidade.

Sua descida pela grande avenida lhe dava um misto de curiosidade, medo e revolta. A alegria o esperava no final do trajeto. Já podia senti-la, gestacionando no peito. No entanto, em seu trajeto, a paisagem reimprimia em seus olhos a lembrança que amargamente o incomodava.  Via pessoas pela calçada, fugidias em seus olhares tristes. Cofres bem trancados por seus donos, suas chaves escondidas sob dezenas de culpas. Lojinhas de tudo que Elias não precisava. Monstros furiosos a cruzar em cada esquina, ávidos por sangue. Seus cascos equipados com a última geração de marteletes. Saiam de suas cavernas com a função de fazer dano e danarem-se.

Assim, Elias percebia que a realidade era dura, os corações inclinados à maldade, e o futuro incerto.

Superou mais aqueles obstáculos. Outrora diria, “Malditos! Malditos todos!”. Hoje conseguiu chegar à praça sussurrando bênçãos. O escudo que guardava Elias era invisível. Infalível também. Lá, como os sons e os horrores dessem trégua, um raio de sol trazia o improvável brilho das flores. Pequenas abelhas brotavam das narinas da terra e bailavam. As pessoas mais sãs que se podia contar entre os viventes, agora esticavam-se nos bancos da praça. Olhares sérios de quem compreendeu a vida, e sorrisos no partilhar de qualquer comentário inocente.

Neste lugar também se achegavam os miseráveis. Sucumbiam, privados de qualquer esperança. Entretanto ainda estavam lá. O dia do acerto pode demorar um pouco para os que já colecionam algumas cartas de bondade.


ANTARES (Rival de Ares)

E lá estava, como esperado, Antares.

Antares é viúva. Do seu marido pouco me contou. Que morreu na guerra. Que comandava um batalhão. Não tiveram filhos. Depois disso, Antares dedicou-se a ouvir e observar. Quando aprendeu tudo o que se pode saber sobre o medo, só então pôde viver.

Assim, ela tem por costume sorrir, longamente. Seus olhos reluzentes sobressaem à renda que as rugas delicadamente colocaram nela, por véu.

- Bom dia senhor Elias! Dormiste bem? Como está tua mãezinha?

Olhou-me nos olhos e me saudou com um beijo no rosto. Assim, era muito fácil desejar sempre a sua companhia.

- Toma cá teu desjejum.

Enquanto eu comia a massinha de aipim, aquela amável senhora me disse.

- Sabe Elias, ainda estamos em guerra.

Agucei minha atenção, como se já soubesse da notícia. E ela continuou.

- Tudo leva tempo e preparo, até se construir. Do início das chuvas, até chegar em sua mão, este bolinho demorou toda uma estação para se formar. O aipim desejava existir. Então criaram-se a terra e os céus, para onde foram morar as nuvens. Juntos formaram o aipim, que no entanto lançou-se, desde o seio da terra, a crescer. Antes que eu termine esta história, o bolinho não mais existirá. Perceba assim, como é fácil destruir. Destrói-se muito rapidamente, o que centenas de corações sangraram para formar.

Olhou para o chão, o lençol de todas as almas, e continuou.

- No princípio, a terra e os céus firmaram um pacto. Os céus então enviaram os seus mensageiros, a cuidar de que a terra faria a sua parte. Todos eles, a cada semana, trabalham diligentemente para construir a perfeição. Por sua vez, inevitavelmente, os aprendizes do mundo, nos campos de suas variadas colheitas, perecem. Resta-lhes a história, de seus atos de bravura e de suas vergonhas.

- Eu queria uma batalha em que pudesse morrer de forma honrada. - Lamentei.

- Calma filho - continuou a voz da sabedoria. - Está tudo em seu lugar. Esta batalha começou no dia em que você foi gerado. E você já está morrendo, não tenha pressa. Não cabe a você escolher o momento em que o fiel da balança irá estacionar. Pense assim. A cada manhã, tudo recomeça. Como o sol está sempre nascendo, é sempre uma refrescante manhã. O passado é uma herança, de coisas boas e más. Escolhe já para que lado se inclinará sua vontade e está feito. O dia acaba ao pôr-do-sol, quando somos visitados pelos exércitos dos céus. Hora em que suspiramos “y - áh..” Inspira e expira, e todo o seu dia passa diante dos seus olhos. Em justa medida nos é dado o pagamento. Paz para os que lutam legitimamente. Expectativa de morte para os que, aficionados, cavam seus próprios ventres com as mãos. Escolheremos novamente, se outro dia tivermos. Quando por fim tombar a velha árvore, tornar-se-á conhecida, pelo lado no qual seus ramos deitou.

O GRANDE MAR

A instrução passada por Antares fervilhou no pensamento de Elias. Olhou, como nunca antes, o infinito céu azul. Imaginou seus exércitos, sentiu no peito a vibração de incontáveis carros de guerra. O espírito do vitorioso achegou-se a ele. Viu-se completamente livre e as possibilidades eram como o céu. Naquele dia, Elias amou mais do que de costume. Cada palavra sua continha a singeleza da harpa, e a força do trovão. Todos da praça o saudaram. Deu o menino, a cada um dos seus amigos, o que mais necessitavam.

Quase à hora nona, estendeu Elias o olhar para além do caminho que descia da praça florida até o mar. Daquele ponto não se via o mar, apenas a longa avenida a ocultar-se na bruma cinza, entre os prédios. Por ali nunca passara Elias. Nem por isto os seus passos vacilaram. Os seus pés sentiam o chão, como se o apalpassem. Mesmo quando a praça sumiu lá atrás, com suas flores e perfumes, nada temeu nosso jovem aventureiro. Ao fim do dia viu no horizonte o vulcânico sol, a se deitar sobre as águas de baixo. Ali encerram-se os trabalhos de Elias, com os quais se ocupava desde menino. Na areia macia, ainda quente pelo sol que o deixava, Elias dobrou seus joelhos, curvou seu tronco, fechou os olhos, estendeu seus pés, descansou suas mãos à frente. Apoiou sua fronte sobre as mãos, respirou e disse:

- Bendito és Tu, Deus Eterno, nosso Pai, Rei de todo o universo, que criaste os céus, a terra, o mar e tudo o que neles há. Bendito és Tu, ó Altíssimo, Santo em todos os seus caminhos, único e verdadeiro Senhor, nossa vida, justiça nossa e salvação. Senhor do dia e Senhor da noite. Tudo te pertence. Toma mais uma vez as nossas vidas, revela-nos teu amor. Tua misericórdia nos alcançou e tua fidelidade vai adiante de nós. Descansamos em Ti e temos paz. Paz seja com os teus filhos, com todos os que gemem por causa das injustiças que se cometem na terra.

E tantas outras palavras, grandes e firmes, declarou Elias naquela noite. Por fim adormeceu. Naquela noite não fez frio. O mar respondeu, por milhares de vezes, à oração de Elias: AAAAAAA - MEEEEEN.


A ROSA (HOSHEA)

Acordei quando prenunciava a aurora. Lentamente, como deve ser, foram se ligando os meus nervos. Sem telhado, sem previsibilidade. Iniciei minha jornada junto ao mar, o grande mar. Fiel aos ventos, trabalha incansavelmente e não se queixa, pois esta é a alegria do mar.

        Apenas duas opções; sempre as mesmas duas opções. Seguir ou parar? Crer ou temer? Dar ou receber? Tive que escolher o lado da praia para o qual seguiria. Como já estavam ali os passarinhos, muito antes de mim, procurei ouvi-los. Os passarinhos sabem das coisas.  Do alto, observam as coisas e não lhes falta o alimento. Um bando de trinta-réis voou para o nordeste e eu os segui. Quando silenciam os pensamentos, algumas decisões tornam-se fáceis.

A poucas dezenas de passos logo vi uma boa vegetação. É mesmo lindo, chegar-se a um oásis, pois as árvores batem palmas, recebendo os visitantes. E a água ali era doce. Água pura, que lava as mãos, o rosto, a boca e o ventre. A água é um tipo de luz.

Lembrei-me do povo que para trás ficou. Lembrei-me da minha querida mãe. Chorei por meus mortos. Lágrimas não faltaram e foram, todos eles, sepultados na areia fina do chão.

Poucos foram os animais que ousaram revelar-se. Os peixinhos na água a se multiplicar, alheios aos mundos de cima. As formigas em permanente instrução, falando baixinho aos nossos ouvidos. E os bichinhos no alto das árvores. Estes, eventualmente nos observam e, continuam em seu reinado.

Assim limpo e saciado, sentei-me à sombra de uma bela árvore, a mais experiente e vigorosa. Imaginava a vida, oriunda do profundo solo, migrando, subindo pelas raízes em caudalosa corrente, trazendo à existência aquilo que só existia na escuridão. No ramo mais extremo daquela árvore, desenhava-se um pequeno poleiro. Logo percebi, lá no poleiro encontrava-se o trono dos reis. Primeiro foi o bem-te-vi. Entoou o seu canto e anunciou o início da celebração. Seguiu-no um tucano, e com seu bico apontava o norte e depois o sul. O sul e depois o norte. E esta era a magia do tucano. Como o alto mirante era muito disputado, acomodei-me melhor no chão, pondo uma pedra como travesseiro. Por aquela escada de galhos, saltando de um a um, a figura mais linda foi se revelando e, por fim, alcançou o topo. Para a minha grande surpresa o rei era um udu, udu-de-coroa-azul. Verde, amarelo e cintilante, quem já o viu bem sabe, é a mais singela das aves. Também azul na cabeça e na cauda, com dois ricos penachos em forma de colher. Por fim, tem olhos de fogo. O fogo dos seus olhos fizeram toda aquela mata silenciar. Até mesmo as cigarras contiveram-se e eu mesmo, quase parei de respirar.

U-DÚ. Silêncio. U-DÚ. Silêncio. U-DÚ. Silêncio. U-DÚ. Silêncio. U-DÚ. Silêncio. U-DÚ.

De repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a mata.

U-DÚ!! Então do mesmo céu desceu um dourado, reluzente, beija-flor. E eu Elias era uma branca rosa que brotava do arvoredo. Estando eu pleno e meu perfume exalando, veio a mim o beija-flor e cortejou-me. Examinou minha brancura e a cada pétala, como se nelas estivesse escrita a minha história. Fitou minhas entranhas e ainda certificou-se do cheiro e eu… Ah, eu amava aquele beija-flor. Mais ainda do que amava ao udu, ao tucano e ao bem-te-vi. Mais ainda do que aos saguizinhos, às formigas e aos peixinhos. Mais ainda do que a Antares, do que a Luzia, do que a mamãe. Eu amava o beija-flor mais do que tudo, e toda minha beleza de flor encerrou-se em uma última lágrima, de perfeita alegria. O meu amado então, com seu amor cuidadoso, aproximou-se da pequena gota e a sorveu.

Foi assim, deste modo tão sublime, que eu deixei este mundo.

De onde estou agora, espero que você também cumpra a sua jornada, e junte-se a mim.



Pela graça de Deus, o único Eterno.


André Ricardo Nunes, 09/04/2025.